Por Vânderson Domingues

Às vezes me perguntam o porquê (e o para quê) de se procurar a clínica. É claro que não existe uma resposta pronta para essa questão, mas refletindo outro dia me lembrei de uma metáfora interessante que resolvi adaptar e que talvez ajude a esclarecer, em certa medida, esse ponto.

Muitas pessoas, ainda hoje, acreditam que a clínica é apenas para casos onde a vida do individuo tenha se tornado muito ou totalmente "disfuncional", mas não é bem assim. Nossa psique, em termos simplórios e apenas ilustrativos, pode ser comparada a uma casa com diversos cômodos*. Cada "cômodo" guarda histórias, afetos, memórias, experiências e conhecimentos que dialogam entre si e com "quem" nele transita. Ao mesmo tempo, os cômodos são ocupados com móveis que são como instrumentos para manter uma harmonia funcional e estética.

Tal qual um armário da cozinha usualmente guarda pratos, travessas e talheres, os "armários da mente" podem guardar muitas ferramentas úteis para ocasiões específicas de nossa vida ou do cotidiano: são os aprendizados formais e não-formais da caminhada. Em outras palavras, o repertório existencial, que emerge em situações simples como quando vamos abrir um vidro de palmito e furamos a tampa para sair o ar (diminuir a pressão), utilizando um conhecimento prático de física, mas também em momentos difíceis em que utilizamos recursos subjetivos como a inteligência emocional para atravessar um sofrimento por perdas e ou mudanças inesperadas.

Entretanto, através das experiências também aprendemos formas de lidar com a vida que deixam de ser úteis, apesar de terem sido relevantes para passarmos por algumas situações e ou períodos importantes de nossa existência. 

Dessa forma, é possível que dentro desses "armários" estejam também "objetos" (recursos) que há muito deixaram de ter um propósito. Em outros casos podem até estar sendo prejudiciais à saúde psíquica. Muitos de nós, ao abrirmos os armários de nosso quarto, por exemplo, talvez nos deparemos com uma bela vestimenta que usamos no casamento de nosso/a melhor amigo/a. O problema é que esse casamento pode ter sido há anos e de lá pra cá nunca mais sequer levamos aquela roupa especial para lavar.

Mas, e se em um belo dia resolvemos fazer uma limpeza no armário e descobrimos que a roupa do casamento guardada tinha uma mancha de doce que propiciou a criação de baratas? Que essas baratas se alojaram dentro e debaixo do móvel e que muitas estão mortas causando um mau cheiro insuportável?

Ao analisarmos a situação constatamos pelo menos duas dificuldades: A primeira que o móvel é pesado e difícil de retirar do lugar sem ajuda. A segunda que o armário está cheio de roupas, sapatos etc e vai dar um trabalho imenso para tirar tudo e limpar.

Nesse momento podemos tomar duas decisões: pedir auxílio a alguém para arrastar o móvel e fazer a dedetização, ou limpar o armário superficialmente e comprar uns aromatizantes de ambiente para disfarçar o mau cheiro.

Se escolhermos a segunda opção, por mais que possamos sustentar a situação por um tempo, sabemos que existem baratas mortas debaixo do móvel e essa questão não resolvida pode ser um incômodo em si. Além disso, sabemos que um dia precisaremos encarar o fato de que é necessário arrastar aquele móvel para retirar os "cadáveres", pois o mau cheiro não irá melhorar por si, pelo contrário.

Então podemos continuar nos esforçando para camuflar a situação ou utilizarmos nossa energia e esforços para realmente purificar o armário, ou seja, dar encaminhamento à questão. Camuflar o mau cheiro tal qual carregar as "baratas" (questões mal resolvidas) no arcabouço mental é dispendioso e desgastante. E pior: não funciona direito. Volta e meia o problema retornará a incomodar, pois as "baratas" podem começar a aparecer em mais lugares da casa.

Obviamente, o móvel bloqueando o acesso às "baratas" é uma metáfora para um sentido de mudança. Tentar manter o móvel em seu lugar (estático) habitual pode indicar uma rigidez diante de situações da vida que precisamos transformar, pode indicar uma dificuldade de encarar as “baratas mortas” que afetam diversos aspectos da psique.

É nesse ponto que o papel do profissional da clínica pode ser de valiosa contribuição. O clínico é um facilitador dos “porquês” e "para-quês" ajudando o/a partilhante na descoberta dos caminhos para o “como” da autotransformação.

Não estou dizendo que a única forma de trabalhar as questões é com a clínica, mas que em alguns momentos é preciso compreender e aceitar que a ajuda profissional é indispensável. Visto que o processo de encarar e retirar as “baratas” que atormentam nossa saúde psíquica pode se tornar muito mais eficaz com o direcionamento de alguém especializado.

Dessa forma, pode se dizer que esse é um dos sentidos mais comuns para a busca da clínica. Ou seja, Quando a pessoa percebe que não está dando conta de lidar com suas dificuldades e que elas estão emergindo em situações da vida, limitando-a.

É preciso, no entanto, que percebamos o cuidado de si de forma mais ampla, em níveis diversos da vida. Isso porque, o cuidado não deve ser somente algo reparador de um processo adiantado de desarmonia, mas uma orientação mais ampla do sentido de viver. 

Assim, o cuidado pode ser procurado quando percebemos que um incômodo, ainda que inicial, apareceu, mas, sobretudo, em aspectos mais profundos: a transformação de si e a busca de uma vida com mais autenticidade.

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Texto escrito em 2011 e revisado em 2025.

*A mente, obviamente, é muito mais complexa do que um sistema organizado por compartimentos que guardam ferramentas úteis, memórias e afins, como o texto parece sugerir. Em minha defesa, quanto ao "modelo" da mente utilizado, apenas posso dizer que na época ainda não tinha estudado Filosofia da Mente e meu trabalho clínico era voltado para modelos de estágios/estados de consciência. Entretanto, essa metáfora funcional da mente, para o objetivo proposto, pode ser satisfatório para elucidar um certo aspecto existencial da mudança. Em outras palavras, apesar do "modelo" utilizado no texto ser bastante limitado, não caberia expor e ou discutir problemas complexos da neurofilosofia, que abrangem cartografias mente/cérebro, para o objetivo proposto.