Em tempos de redes sociais, o recurso de compartilhamento de frases se tornou muito popular entre os usuários que acessam a grande teia virtual todos os dias.
Duas frases muito comuns, multiplicadas em diversos perfis pela rede, são atribuídas ao Buda (Sidarta Gautama):
"Somos o que pensamos. Tudo o que somos surge com nossos pensamentos. Com nossos pensamentos, fazemos o nosso mundo."
“A lei da mente é implacável. O que você pensa, você cria; O que você sente, você atrai; O que você acredita, torna-se realidade.”
Talvez seja possível aplicar um sentido de interpretação parecido para outra frase atribuída ao Cristo (Jesus): “Vigiai e orai, para não cairdes em tentação. O espírito, com certeza, está preparado, mas a carne é fraca.” (Mateus 26:41).
Nas três citações, talvez surja no interlocutor uma ideia de que devemos nos interpor aos pensamentos considerados maléficos, como também que os pensamentos surgem apenas de nós mesmos e, por isso, devemos assumi-los como nossos de maneira unilateral.
Mas o que (quem) são esses pensamentos? Será que são todos elaborados pelo arcabouço do ego (eu individual)?
Desde a cartografia da consciência de Freud é aceita a ideia de que o que se passa pela nossa mente advém não somente da mente ordinária, mas, além disso, do inconsciente.
O inconsciente, por sua vez, pela perspectiva de estudos contemporâneos sobre a mente, pode ultrapassar a noção de eu pessoal, sendo permeado também pelo inconsciente familiar, pela herança ancestral, o inconsciente coletivo, os níveis transpessoal e cósmico.
Será então que podemos/devemos evitar o fluxo de todos os pensamentos? A resposta óbvia é não. Mas claro que podemos/devemos nos conciliar com eles.
Ouvir um pensamento demanda disciplina. Para os budistas, a meditação auxilia nessa tarefa, para os cristãos, a oração contemplativa. Entretanto, comumente, estamos tão identificados com o que se passa em nossa mente que acreditamos que os pensamentos são de fato um genuíno eu falando dentro de nós.
É preciso, antes de qualquer coisa, diferenciar o pensamento que pensa em nós do que de fato é o observador em nós, a presença serena e lúcida, que pode discernir o que estamos incorporando como verdade e muitas vezes não passa de autoilusão.
Nesse sentido, talvez um "anjo" possa soprar em nossos ouvidos uma verdade celeste e acreditarmos que fomos somente nós os autores de tamanha inspiração divina. Ou, ao contrário, podemos cair no engano de crer que somos meros mensageiros e esquecermos que somos um filtro, ou seja, uma espécie de coautores de tudo que se passa em nós.
Do mesmo modo, por vezes nos gritam os "demônios", os "fantasmas" que há em nossas sombras, no medo, na tristeza, na raiva, só para citar alguns. Podemos tomar tais ideias, por vezes pervertidas, como se fossem a representação mais fiel da nossa existência manifesta no agora, gerando preconceitos, julgamentos e padrões negativos de viver.
Mas existe ainda o pensamento que sussurra tão baixinho que nem sequer nos damos conta de que estamos pensando ou quem sabe se ele é quem está pensando em nós.
E o pensamento, por vezes, pensa sim em nós. Quando não o ouvimos com serenidade ele pode nos tomar de assalto, nos fazer reféns e ditar ações como se fôssemos apenas fantoches no teatro da vida e, não por acaso, encontrarmos outros fantoches que contracenem com os dramas mais obscuros da nossa inconsciência.
Dessa forma, em certa medida, as frases atribuídas a Buda tem razão. Imprimimos, moldamos e interpretamos a realidade pela perspectiva do que pensamos, sentimos e passamos a acreditar como sendo o “eu”, criando e cocriando realidades com outros em semelhante condição.
Mas, se já não bastassem tantos “eus” invisíveis e os mais palpáveis, miríades de memórias pensam em nós. E nos falam com a voz de nossa infância e das descobertas da adolescência, as memórias discursam com a imagem de nossos pais, da árvore genealógica, com os tambores da cultura milenar e o clamor dos ancestrais, com as heranças dos reinos micro e macroscópicos, das rochas, das plantas, dos seres sencientes, da humanidade inteira, como também do pó das estrelas que habitamos e que habitam em nós...
E pensa em nós a divindade cósmica, no silêncio profundo da noite quando ousamos ouvir com a alma, quando abrimos o coração no raiar do dia e relaxamos a mente em demasia racional que teima em tentar controlar a impermanência da vida. Quando pensamos com a divindade em nós, transcendemos a limitação da “carne fraca” e fluímos no Espírito.
Diante do mar de pensamentos que nos falam, fica impossível acreditarmos que somos individualmente senhores de todos os vetores dessas ondas, das ideias que emergem em nosso pequeno ego, mas é plausível sentir o quanto é importante criar harmonia com esse oceano de imagens, fazer as pazes com os conflitos que algumas delas trazem, como também honrar a sabedoria de outras...
É preciso utilizar o sentido do vigiai citado por Cristo como o de um observador paciente acolhendo os “filhos ingênuos”, escutando com atenção os "pais conselheiros" e os "sábios anciãos", perdoando e curando alguns "velhos ranzinzas" e os "vizinhos" que fofocam em nós...
É preciso auscultar como um Buda de onde oriunda o pensamento praticando a ciência da paz, a paciência, para abraçar com compaixão, gratidão e consciência “aqueles que pensam em nós”.
*Texto publicado em 2014 e revisado em 2025.
REFERÊNCIAS:
LELOUP, Jean-Yves. O Anjo como mestre interior. São Paulo. 2ª ed. Vozes, 2010.
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